domingo, 28 de março de 2010
Quando é preciso funcionar
Surpreendeu-se ao sentir seu peito inquieto ao despertar. Era sexta-feira. Sextas normalmente eram dias bons... Calor desconfortável. Uma insistência de seu coração em bater desaforado, como que fazendo questão, a cada “tum dum”, de provar seu descompasso.
Fechou novamente os olhos. Levantar agora seria quase impossível. No mínimo doloroso. Por vezes, os olhos cerrados a ajudavam a retomar a calma. Em raras e inesquecíveis ocasiões, teve o mimo de voltar a dormir. Hoje não. Nem calma, nem sono.
Lembra-se do sonho: morria mas mantinha alguma instância de consciência. Preocupava-se: “Será que alguém iria a seu funeral?” “Quem lamentou sua morte?” Afinal, as pessoas tinham suas vidas, seus afazeres, rotinas, hábitos. Nunca sentira-se ligada com a natureza cotidiana do ser humano. Ao sonhar com sua morte, questionava se alguém via nela algo de semelhante. Um traço de afinidade suficiente para que manifestasse alguma forma de luto.
Não era tanto que os outros lhe parecessem estranhos. Sempre soube que era ela a incomum. Ímpar. Sem duplo, sem sinônimo, sem reflexo. Mesmo aborrecida pelo sonho mórbido, sorriu. Não era irônico como, mesmo confrontada com seu fim, ainda se ocupava das dificuldades de estar entre os vivos?!
Agora bastava. Tinha que sair da cama! Tocar os pés no chão. Lavar o rosto. Banho. Escovar os dentes. Vestir-se. Era preciso funcionar. Nada. “Covarde!”, gritava, muda.
Sim, hoje precisaria dos espelhos. Temia banalizá-los. Desgastar, abusar ao ponto de que deixassem de funcionar. Nessa sexta-feira seria inevitável. Ainda de olhos fechados, recordou a primeira vez em que percebeu que aqueles sons que saíam dos discos de seu pai eram fonte de extremo prazer. E calma. Sons que eram casa. Tempos depois, viu que os sons tinham palavras vivas, urgentes. Uma narrativa. Algo como as histórias dos livros que sua mãe lia antes de dormir.
Nada de cotidiano, vulgar ou previsível. Era seu idioma, seu lugar. Tinham sentido. Ao ouvir: “Tem mais samba no peito de quem chora | Tem mais samba no pranto de quem vê | Que o bom samba não tem lugar nem hora | O coração de fora | Samba sem querer”, não estava mais só. Ela pertencia. Aos poucos, foi preenchendo seus espaços com os tais espelhos. Cada disco, cada livro, os filmes, a dança – eram suas passagens secretas para um tempo em que ela era serena e presente.
Então lembrou que bastava vencer algumas horas. À noite estaria com eles. Contando com isso, sairia da cama. Esqueceria do calor do peito. Era sexta-feira, dias quase sempre bons. Não hoje. Era preciso funcionar.
Estava por lançar-se da cama quando pensou novamente no sonho. Era tudo como agora. O mundo e as pessoas existindo. Alguém dava sua falta enquanto estava ali, atrasada? Fora do tempo dos outros? Só...
Como que respondendo a sua pergunta, a mãe entra no quarto. Carinhosamente aumenta a intensidade da luz e diz: “Filha, já são dez horas. Uma menina de nove anos já tem que levantar sozinha de manhã!”. Culpava-se por não ser a menina de nove anos das expectativas da mãe. Por isso finalmente levantou. Por ela era preciso funcionar...
Anos mais tarde, ao chegar em casa, derrubou um livro de sua estante. Satisfeita com o acidente que consonava com sua paixão pelo que não tinha explicação total, escolheu uma das páginas aleatoriamente. Feito a leitura de um oráculo. Nelas, seu poeta mais íntimo dizia: “Queriam-me casado, fútil, quotidiano e tributável? | Queriam-me o contrário disto, o contrário de qualquer coisa? | Se eu fosse outra pessoa, fazia-lhes, a todos, a vontade. | Assim, como sou, tenham paciência!”!
Lembrou daquela manhã de sexta-feira. Entendeu que sobrevivera. E que funcionava. Funcionava com a convicção de que sua verdade era marginal.
Quatro horas da manhã. Apagou as luzes, ligou o som, acendeu um cigarro. E só.
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2 comentários:
Lindo conto Bruna. Já estávamos com saudades dos teus textos.
Precisamos funcionar sempre...e não por ninguém...mas sim por nós mesmas.
Boa semana.
Saudades, BJOS.
Ui Ui Ui!
Adoro minhas amigas que escrevem.
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