O Carro de Feno

Ela pega o telefone e hesita. Sem saber a razão, lembra do tríptico do Bosch, o Carro de Feno. À esquerda o pintor apresenta o paraíso, tendo no alto “Deus Pai”. No centro, há o carro de feno, que representa o mundo. (Bosh baseou-se no provérbio “O mundo é um monte de feno e cada um agarra o que pode”.) À direita o temido inferno, onde demônios alojam os pecadores em uma torre.
Alguns possíveis cenários são imaginados.

Éden
- Alô?
- Alô! Aqui quem fala é a ...
- Oooooiiiiiiiiiiii!!! Ainda bem que você ligou. Depois é que fui me dar conta de que não peguei seu telefone! Fiquei super arrependido, pensei que não ia ligar.
- Pois é... Então, tudo bem?
- Tudo legal! Então, vamos fazer alguma coisa? Gostei de te conhecer...

É uma possibilidade animadora! Mas ela sabe por experiência que não é lá muito saudável alimentar expectativas tão positivas.

Inferno I
- Alô?
- Alô? Quem fala???
- Desculpa. Acho que liguei errado. Esse não é o celular do...
- É sim! Ele está no banho. Quem quer falar com ele? Como conseguiu esse número???
- ....

Inferno II
- Alô?
- Alô. Quem fala?
- Nos conhecemos no sábado... Você me deu seu telefone. Lembra?
- Sábado... Sábado... Ah! No aniversário do…
- Isso!
- Ah, tá, legal...
- Então, tudo bem?
- Tudo... Olha só... Não posso falar. Agora tenho seu telefone. Outra hora te ligo, ok? Até mais.
- Errrr... Tá… Até mais…

Agora ela está apreensiva! Acende um cigarro. O maço acabou. Enrola o pacote numa bolinha e pensa: “Se eu acertar na cestinha do lixo, ligo pra ele e vai dar Éden!”. Mira e joga a bolinha que, caprichosamente, bate na bordinha do cesto e cai para fora.
“Putz! Não pensei nessa possibilidade. Afinal, a bolinha ENCOSTOU no lixo...”. E agora? Começa a negociação: “Talvez isso signifique que eu deva ligar. Tudo bem, não vai ser o paraíso, mas de repente não vai ser tão ruim”...
O cigarro acabou. Abre outro maço, pega o papelzinho, enrola e: “Vou jogar novamente. Agora vou seguir À RISCA! Se entrar, ligo. Se não, não!!!”.
Joga... Cesta!!!
“Ok. Deu cesta. Mas e se eu estiver errada em ignorar o primeiro arremesso? Agora já tô pirando! TOC total. Vou ligar. Se der inferno, pelo menos já sei e posso desencanar...”

Ela respira fundo. Acende o segundo cigarro. Pega o guardanapo com o número e disca.
“Sua ligação será transferida para a caixa postal e estará sujeita a cobrança após o sinal”.

“O que é isso??? Deu coluna do meio, Carro de Feno! Maldito Bosch!” Ela desliga rapidamente. Começa a se perguntar se deve deixar um recado. Amassa o guardanapo. Afinal, já tem o número salvo em seu telefone. Faz uma bolinha. Mira a cestinha de lixo e...

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